O des(conto) de Maria
Podia ter sido um dia bonito. Podia. Era início de dezembro, o dia até estava agradavelmente quente naquela manhã, ou então foi ela — ela que, com tanta energia inquieta dentro de si, aqueceu repentinamente como uma chaleira. Mas Maria decidiu que, naquele momento, algo tinha de mudar, ela tinha de mudar.
“Não consigo mais, eu já não sou eu, e tu já não és tu.” Foram das poucas e ridículas coisas que ela lhe disse numa carta, depois de já as ter tentado expressar ao longo de meses sem sucesso. Houve tanto que podia ter feito e dito, mas soube que ele nunca iria perceber as suas palavras, as suas emoções, bem como ela dificilmente conseguia perceber tanta coisa que ele admirava e gostava.
Ela prendeu-se durante uma imensidão de tempo, agarrada à imagem de alguém que ele fora em tempos, e à expectativa de alguém que ele seria um dia. Aquela imagem perfeita que, erradamente, tendemos a criar nas nossas mentes.
“Ele vai mudar, eu sei que vai, e vai ser tudo incrível e maravilhoso no futuro. Vai ser o pai que eu sempre sonhei para o nosso filho, vai ser o homem com quem sempre sonhei viver e partilhar a vida.” — sussurrou ela baixinho nas várias noites em que preferia ignorar o mau humor dele.
Só que o que ela esperava nunca aconteceu e, antes que a história deles se tornasse cheia de raiva, remorsos e ridicularidades, ela decidiu acabá-la. Repetiu inúmeras vezes para si que poderia aguentar mais um dia, mais uma semana, mais um mês, mas a verdade é que, nesse tempo todo, acabou por se desprender dele. A ideia de não estarem juntos pareceu-lhe cada vez melhor. Era irritante quando a sua mente lhe colocava uma ideia lá dentro e ela tentava combatê-la a todos os custos. Sofria e chorava a contrariá-la, mas acabava por compreender que sabia o que era melhor para si.
“A vida será sempre dura e também sempre fácil, o sol vai sempre brilhar amanhã, e tu já chegaste bem longe, sua corajosa. Maria, dá-te um desconto!”
O seu coração parou por cada vez que imaginou o cenário caótico, na sua cabeça atulhada de ansiedade, em que lhe dizia que já não dava mais. Agradeceu a si própria por se ter preparado tão bem para aquele momento, ao longo dos últimos meses, que se dissiparam entre discussões e dias de silêncio entre os dois. Ainda se lembrava de arrumar as malas no silêncio do dia, enquanto ele trabalhava. Fora das coisas mais duras e adultas que já tivera de fazer a alguém que amava, por alguém que ela amava ainda mais.
Ela gostaria que ele lhe tivesse permitido dizer um adeus normal, terminar uma relação cara a cara. Mas, quando a pessoa que a devia tranquilizar a atormentava com as palavras e ações, ele acabou por escolher uma forma mais segura para todos. Sentiu a perda de si própria no momento em que aceitou que não conseguiria dizer-lhe o que precisava presencialmente, e soube também que o iria perder para sempre assim que ele desse por isso.
Ela sabia que, quando conhecemos uma pessoa tão bem, que até a conhecemos melhor do que ela própria conhece o umbigo, aprendemos a evitar a sua autodestruição — que, consequentemente, provoca devastação ao seu redor — e compreendemos, nesse instante, o quão doloroso será para todos os lados. Era assustador e reconfortante, ao mesmo tempo, ela conseguir prever comportamentos daqueles que mais amava. Ainda não compreendia bem de onde vinha aquele superpoder, no qual conseguia antecipar reações e palavras. Aprender a colocar as expectativas tão reduzidas para evitar uma grande desilusão era o quão ridículo ela chegara.
Ela acreditava que amar não deveria ser assim. Perceber que a definição de amor e amar era tão estupidamente diferente para duas pessoas foi angustiante. Ele acreditava num amor cego, em que tinham de sofrer um pelo outro até passar, até normalizar. Que era preferível viver numa relação com mágoas constantes a tentar algo que realmente os fizesse felizes na simplicidade.
Ela via a felicidade nas ondas do mar, no sol quente que lhe aquecia a pele, no pedaço de pão quente e crocante acabado de fazer, num simples copo de água refrescante. Para ela, amar era simples, embora não soubesse bem explicar como amava, mas sabia quando o fazia profundamente. E entristecia-a sempre que era preciso mais para ele, ao ponto de começar uma linha de pensamento sobre as suas próprias escolhas.
Maria deu por si numa espiral de pensamentos que lhe atormentavam as noites e os dias. Foram tantas as vezes que visitou o passado, pensou nas vezes em que realmente tivera sinais de que talvez eles não fossem o tipo de casal que durasse para sempre. Inacreditavelmente, encontrou diversos sinais, mas percebeu que o seu “eu” do passado gostava e queria aquilo naquele momento. Achou que era o ideal para ela, o que ela merecia.
E jurava que não queria demonizar a pessoa, mas apercebera-se agora de que havia muito que não merecia — muito do que ele lhe oferecera sem ela pedir. Acreditou também que ele pudesse sentir o mesmo, afinal de contas, ninguém é perfeito. E, quando pensou se haveria algures no mundo alguém ideal para si, concluiu que seria mãe solteira e acabaria sozinha, com a casa cheia de cães e gatos. Mas também sorria ao saber que não teria de aturar as tretas de ninguém.
E agora, na escuridão da noite, enquanto pensa na sua história com ele, vê o quão corajosa foi. Nunca pensou que conseguiria deixar alguém que amasse tanto — ou que amou tanto… porque isso mudou tudo.
Dói-lhe na alma saber que tem um filho que sente saudades do pai, mas sente um alívio por saber que lhe dá uma casa com a maior tranquilidade possível.
O sentimento de contradição nesta situação é tão cansativo: num momento, Maria sente a falta dele, e dói; noutro momento, sente uma libertação estranha, que a faz sorrir. Já deve ter dito umas dez mil vezes a si mesma que vai ser assim durante algum tempo, e que vão haver dias horríveis, e que vão haver também dias incríveis.
Quando reconhece a sua bravura nesta história, alegra-se. Sabe que vai ficar eternamente grata a si própria por ter conseguido tomar a decisão de sair. Por muito doloroso que seja o fim, foi um fim do qual se orgulha — mas que sabe que ele nunca irá compreender.
E, ao final de um dia normal, daqueles com desafios familiares de crianças pelo meio, na serenidade da noite, depois de rever a sua mais longa história de amor por outro, turbulenta mais uma vez, a voz interna de Maria diz-lhe:
“A vida será sempre dura e também sempre fácil, o sol vai sempre brilhar amanhã, e tu já chegaste bem longe, sua corajosa. Maria, dá-te um desconto!”
Autoria/Author: Catarina Encarnação
Fotos/Photos via Pexels, por/by Felipe Pick Costa